Olá,
estamos mais uma vez aqui, neste mesmo canal, neste mesmo horário para
apresentar este mesmo programa de tv. Sou o mesmo apresentador de todos os dias
e estaremos apresentando as mesmas fatalidades de sempre, mas com alguns
personagens alterados. Recebemos o mesmo salário de sempre, temos o mesmo
quadro de funcionários de sempre e olho para a mesma câmera como mesmo
câmera-man de todos os dias para o começo do programa já que todos os dias
começo com ela mesma, e agora muda para a outra, um pouco mais focada. Leio o
mesmo de sempre, com o mesmo medo de vocês perceberem que o meu olho mexe lendo
o texto, afinal, estamos no começo do jornal e tenho que jogar às pessoas que
estão assistindo um resumo do que vai acontecer hoje, quais as reportagens
repetidas, os mesmos casos de indignação pública, os mesmos assassinatos, os
corruptos, umas matérias sobre culinária, previsão do tempo que sempre são as
mesmas, e , confesso, não são nem necessárias, já que todo mundo sabe, não é
mistério. E assim começo: lendo aquilo que todos os dias escrevo antes de me
maquiar, de me arrumar, de passar pelas mesmas salas antes de vir para a mesma
cadeira, colocar a mesma senha neste computador que desde o começo do meu
trabalho nesta mesma emissora uso. Agora, o câmera vai, como sempre, dar um
zoom pois a notícia que eu estou dando não é das melhores, me cortar e um
operador lá de cima vai dar play a uma gravação que eu mais cedo, narrando,
indignado fiz. Vou ficar aqui ensaiando as próximas falas para eu não gaguejar
e não fazer feio, até por que foi difícil chegar onde eu cheguei. Aí o câmera
faz o mesmo movimento chato com a mão, acho que inclusive é um toque dele, que
chega até a estralar os ossos, nem sei, mas faz um barulho inconveniente, e
mais uma vez penso em falar isso a ele, mas o tempo é curto e como sempre não
dá para dizer nada pois no monitor já aparecem as minhas próximas falas que eu
estava lendo nos papéis que estavam na minha mão. Aquele mesmo nervosismo de
sempre que, por mais que eu estivesse naquele estúdio há muito tempo, eu sempre
teria aquela mesma pontinha de apreensão de antigamente. E volta, como sempre,
ao vivo, na minha cara boba de sempre, com mais uma notícia trágica que eu
tenho a certeza que mais uma vez aconteceria, e tenho a certeza de que não
seria a última vez que eu passaria aquilo, como uma bomba, um atentado, um
assassinato a um juiz, etc. Aí sempre tem aquele pensamento de mandar todo
mundo à merda, eu não sou nem obrigado a aturar notícias e reportagens diariamente...
Aliás, eu sou obrigado sim, eu recebo para que este jornal aconteça, que eu
esteja vendendo diariamente meu rosto, meu busto, sei lá, à vocês. Já sei!
Caros amigos, vocês que acompanham este telejornal há tanto tempo, se atentem a
uma só noticia: Cansei!! Me demito!! Claro que eu não falei isso, mas é que o
câmera fez outra vez aquele negócio na mão, teve um barulho infernal no meu
fone que eu nem posso reclamar pois tem um monte de gente me assistindo, deu
uma pontada nas costas... E ainda tem mais: Estou com prisão de ventre e prendendo
um pum desde que eu entrei neste estúdio, no elevador foi um horror. Estou de
mau humor e sei que quando eu chegar em casa, nem a comida vai estar na mesa
porque eu briguei, quebrei foi tudo lá. Quebrei mesmo, nem quis saber. Claro
que no sentido figurado, que eu não estou nem ficando doido... E lá vem mais
coisas erradas na tela pra eu ler. Caramba, o cara que passa o que eu escrevo
por acaso é analfabeto? Tem ele algum problema sexual? Acho que o diretor,
aquele viado, pode resolver o problema dele, sempre desconfiei das olhadas que
ele me dava, aliás, que ainda me dá. Poxa, eu sou o âncora deste jornal, devo
ser bonitinho, mas não devo ser viado, pelo amor de Deus... Onde estava com a
cabeça quando o cara que escreve no closed caption colocou pra eu falar que o
presidente da república de país tal não queria acordos diplomásticos? Caramba,
ele escreveu diplomásticos! Eu não tenho a letra feia... Tenho a letra linda
por sinal, morri de escrever na faculdade, e todo mundo entendia o que eu
escrevia, por que esta anta não entende? Me diga!! Eu quero só ver esta
maricona deste diretor olhando de novo pra mim, se eu estiver no intervalo ou
não estiver aparecendo dou uma na lata dele. Baitolagem... O câmera de novo?
Cara o que ele tem na mão? Um frivião, uma deficiência? E este outro câmera,
lesado que só ele, tem que ensaiar a posição, como pode? Tem apenas três
câmeras num espaço enorme, e ele ainda precisa ensaiar antes do programa, e o
pior, ainda erra, tanto que é pouco solicitado. Detesto quando faço isso.
Oitocentas e quarenta e cinco folhas na minha mão e eu invento de perder
justamente a deste bloco. Parabéns! Acho que eu deveria ao invés de apresentar
estar substituindo o câmera lesado e seus trupicões, tremendo a imagem por
passar em cima dos fios... Sei não.. E esta emissora? O dono morreu, o
presidente tem quatrocentos anos e está como pé na cova. Lá vem a mulher do
tempo mal vestida que só ela, onde é que estava a cabeça deste diretor dos
infernos quando contratou esta mulher por achar que ela entendia de
meteorologia? Ela está lendo... Me dê o texto que eu faço melhor, e não gagueje
não! Ela deve me detestar, eu sempre brinco com ela no ar para parecer mais
descontraído o quadro, e ela sempre faz aquela cara de quem comeu e não gostou,
aliás de quem foi comida e detestou, também, filha, cadê a bunda? Cadê os
peitos? Sempre usando o velho pretinho básico, não é? Ah, não me diga que no
nordeste não vai chover... Que surpresa! Uma frente fria vindo do atlântico!
Brincar hoje não, se não lá vou eu ser ferino. -Obrigado, peso de papel. O mais
incrível que as pessoas, pelo menos eu acho isso, pensam que eu sou bipolar:
começo o jornal com uma cara de enterro e termino de bem com a vida. Parece que
até é um desabafo. Olha só, já estou com outra cara, esqueci que foram
assassinados cinco de uma vez na Bahia, esqueci do bebê achado no lixo no
recife, esqueci que no Iraque está uma putaria, e agora estou bem feliz dando
dicas de como emagrecer, e some mais uma vez a minha imagem do monitor, volto
eu àquele antro de tocs e de gente tosca e cheia de ziqueziras. Contrarregra
vem com pó para eu retocar uma manchinha, chego até a cruzar as pernas numa posição
de baitola e o diretor me olha esperançoso. Eu rio. Retocadíssimo e belo, pego
os últimos cento e cinquenta papeis do ultimo bloco dou uma lida rápida,
lembrando que tiveram comerciais durante isso tudo, até porque eu tinha que
soltar meus belos puns. É bom que quando estamos no ar, todos os funcionários
ficam empenhados a apenas aquilo, é uma loucura, pode acontecer até um
assassinato nos banheiros ou nas dependências que ninguém nem se dá conta. E lá
tinha ido eu peidar. Queria saber se eu fizesse a sacanagem de ir e não
voltar... Eu iria rir demais. Voltando dos comerciais malditos (bem que este
calvário podia ser de uma só vez ), mostro o cume de minha bipolaridade: estou
feliz, radiante, sou a pessoa mais bem resolvida do mundo e amo todos ao meu
redor por que eu dou dicas a você, consumidor! Abra o olho e não dê dados pela
internet ou telefone, seu jumento, tapado, você se der seus dados vai estar
assinando a sentença de que é a criatura mais retardada que já passou por esta
terra, seu imbecil. Agora, com a cara
ainda mais feliz, como num desenho animado, falarei para a população de um país subdesenvolvido, aliás, em
desenvolvimento (só se for de novas drogas) como é maravilhoso viver num país
desenvolvido, no nosso quadro especial onde exploramos a riqueza dos melhores
países do mundo. Assistam e fiquem realmente bestas seus... Imagino uma criança
do buxão, remelenta, cheia de piolhos e impigens vendo a Suíça, sua
pontualidade, seu chocolate e sua gente bonita... O que é que tem a ver, Jesus?
O estúdio em transe por achar além de ser a coisa mais maravilhosa do mundo,
uma possível indicação a qualquer prêmio desses promovidos pela própria
emissora. Voltando à mim faço qualquer comentário do tipo: -Muito bom, heim? -
ou - Um exemplo de economia que deve-se seguir- ou até - viram seus imbecis
como não tem nem comparação?- O Telejornal termina por aqui, tenham um ótimo
resto de dia, e até amanhã.